Genética do autismo
Gianna CarvalheiraI; Naja VerganiII; Décio BrunoniI, II, III
IDepartamento de Morfologia (disciplina de genética), Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
IICentro de Genética Médica, Departamentos de Morfologia e Pediatria, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
IIIPrograma de Pós-Graduação em Distúrbio do Desenvolvimento, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil
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RESUMO
O autismo é uma doença neuropsiquiátrica com profundas conseqüências sociofamilares. Inúmeros trabalhos investigaram pacientes e famílias com metodologia genético-clínica, citogenética e biologia molecular. Os resultados destes trabalhos apontam para um modelo multiloci com interação epistática associado à etiologia do autismo.
Descritores: Transtorno autístico/genética; Transtornos cromossômicos; Aberrações cromossômicas; Deficiências do desenvolvimento; Genes.
Introdução
Há mais de três décadas existem evidências contundentes sobre o forte componente genético na maioria das doenças psiquiátricas, entre elas esquizofrenia, distúrbio bipolar e autismo. Nos últimos 15 anos, uma série de locos gênicos tem sido associadas a essas e outras doenças mentais, utilizando principalmente análise de ligação gênica. Porém, somente poucos genes específicos têm sido identificados. A maioria desses genes só poderá ser reconhecida quando, literalmente, centenas de indivíduos afetados, e seus familiares, forem analisados. Novas técnicas e metodologias têm surgido como uma promessa para as pesquisas dos fatores genéticos e ambientais envolvidos nas causas dessas doenças.
Os avanços nas pesquisas com genética humana têm aberto caminhos para o conhecimento das vias biológicas das doenças cognitivas e afetivas, bem como de certas psicoses. Devido à grande dificuldade de compreensão das alterações das funções encefálicas, o conhecimento da fisiopatologia do sistema nervoso tem se tornado um grande atrativo. Como mencionado anteriormente, estudos de famílias, com um ou mais membros afetados, bem como estudos de gêmeos e adoção, têm demonstrado que doenças mentais, como o autismo, têm um forte componente genético.1 Entretanto, nenhuma dessas doenças segue um padrão mendeliano de herança, sugerindo uma interação entre múltiplos genes.
O fenótipo autista é amplamente variado. Têm sido descritos tanto autistas clássicos, com ausência de comunicação verbal e deficiência mental grave, quanto autistas com sociabilidade comprometida, que apresentam habilidades verbais e inteligência normal. As anormalidades no desenvolvimento geralmente são detectadas nos primeiros três anos de vida, persistindo até a idade adulta.2 Cerca de 75% dos casos apresentam deficiência mental e 15 a 30% apresentam convulsões.3 O Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais4 e a Classificação Internacional de Doenças5 criaram a categoria Diagnóstica dos Distúrbios Globais do Desenvolvimento e Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID). De uma maneira geral, são todos considerados pela designação Autismo. Os TID prejudicam a interação social, a comunicação e o comportamento, com uma prevalência alta, que pode chegar a 5 casos por 1.000 crianças, cuja razão sexual é de 4:1 entre homens e mulheres.3,6-8
A etiologia do autismo ainda é desconhecida. Centenas de estudos têm tentado desvendar os fatores genéticos associados à doença. As causas neurobiológicas, associadas ao autismo, tais como convulsões; deficiência mental; diminuição de neurônios e sinapses na amígdala, hipocampo e cerebelo;9 tamanho aumentado do encéfalo9 e concentração aumentada de serotonina circulante, sugerem forte componente genético. Além disso, estudos com gêmeos têm demonstrado que em monozigóticos (MZ) a concordância para o autismo varia de 36 a 92%, em contraste com gêmeos dizigóticos (DZ), onde a concordância é nula ou baixa.10 Porém, quando se consideram anormalidades cognitivas e sociais, o nível de concordância sobe para 92% entre os MZ e 10% entre os DZ.11 Outro fato relevante é que, embora o risco de recorrência para o autismo seja baixo (2-8%), o risco relativo é de 50-200 vezes maior que a prevalência da doença na população geral.6,12
Acredita-se que existam de 3 a mais de 10 genes relacionados com a doença.13-14 Além disso, o espectro autista tem sido associado a anormalidades de, praticamente, todos os cromossomos.15 A região 15q11-13, crítica para a síndrome de Prader-Willi/Angelman, apresenta alteração em 1 a 4% do pacientes autistas.16 Aberrações estruturais na região 17p11.2, crítica para a síndrome de Smith-Magenis, também foram relatadas em pacientes autistas.17 Do mesmo modo, pacientes com esclerose tuberosa, síndrome de Rett, fenilcetonúria, neurofibromatose ou síndrome do X-frágil associado ao autismo formam subgrupos etiológicos.7,18 Aproximadamente 30% dos indivíduos com X-frágil apresentam espectro autista.6,19 Entretanto, existe discordância sobre o grau de prevalência do X-frágil nesses pacientes, cuja taxa varia de 7-8%.20-21
A primeira triagem ampla de todo o genoma para regiões cromossômicas envolvidas no autismo clássico associou aproximadamente 354 marcadores genéticos, localizados em oito regiões dos seguintes cromossomos: 2, 4, 7, 10, 13, 16, 19 e 22.22 Entretanto, estudos posteriores apontam as regiões 7q, 16p, 2q, 17q como as mais significativas.23 Recentemente, surgiu evidência de ligação com o cromossomo X.24-25
Genes de desenvolvimento relacionados ao SNC,26-27 genes do sistema serotoninérgico e de outros sistemas de regulação das funções neurais, além dos genes localizados em pontos de quebras cromossômicos,28 identificados em pacientes com autismo, têm surgido como genes candidatos. Na região 15q11-q13, por exemplo, o cluster do gene receptor do ácido amino butírico (GABA) parece estar associado à patogênese do autismo.7,28 Nesta mesma região, o gene UBE3A apresenta expressão predominantemente no cérebro humano.30-31 Porém, como indivíduos com alterações cromossômicas em 15q11-q13 nem sempre são autistas, acredita-se que as modificações desses genes não são suficientes para o desenvolvimento da doença. Essa hipótese reforça a hipótese do sinergismo e/ou epistasia entre múltiplos genes para originar o autismo.
A maioria dos trabalhos tem convergido para a região 7q22-q33. Na região 7q22, o gene RELN, que codifica uma glicoproteína amplamente secretada na migração neuronal, pode apresentar alterações que afetam o desenvolvimento cortical e cerebelar. De fato, anormalidades nos neurônios cerebelares estão entre uma das causas mais importantes na patologia do autismo.11 Nesta região existem, pelo menos, mais nove genes candidatos.6,27,32-34
No cromossomo X, a região Xq22-q23, onde está mapeado o gene AGTR2, é tida como importante.35 Estudos neste gene têm mostrado que a deleção desta região está associada à alta freqüência de deficiência mental em indivíduos autistas. No entanto, a região mais significativa é a Xq13-q21, que contém um dos genes da família das neuroliguinas. As neuroliguinas atuam como mediadoras da interação celular (moléculas de adesão) entre neurônios que possuem receptores do tipo neuroxinas em suas membranas plasmáticas. São encontradas no lado pós-sináptico das sinapses36 e parecem ser essenciais para o bom funcionamento das mesmas.37-38 Mutações nos genes NLGN3 e NLGN4 foram encontradas em duas famílias com membros afetados por autismo e Síndrome de Asperger, sugerindo um comprometimento funcional da sinapse.
Genes que codificam proteínas participantes do sistema serotoninérgico são também fortes candidatos para o estudo em autistas. O mau funcionamento desse sistema pode resultar em depressão, epilepsia, comportamento obsessivo-compulsivo e distúrbios afetivos. De fato, alguns desses genes vêm sendo estudados em indivíduos afetados, entre eles o gene 5-HTT, que codifica o transportador de serotonina, e os genes 5-HTRs, que codificam seus receptores. No entanto, a relação do gene 5-HTT com o autismo ainda é controversa.39-43 Em relação aos genes 5-HTRs, nenhuma associação foi observada para os receptores 5-HTR2B e 5-HTR7,44 mas a presença de um polimorfismo no gene do receptor 5-HTR2A, em autistas e controles, mostrou associação significativa nos indivíduos afetados.
Apesar de todas as discordâncias em relação aos genes candidatos para o autismo, existem ainda boas razões para se acreditar que, uma vez conhecidos os genes envolvidos, novos agentes terapêuticos poderão atuar em alvos moleculares específicos. Na busca desses genes, a identificação de fenótipos quantitativos múltiplos é fundamental na seleção de algumas regiões. Por exemplo, a evidência que os cromossomos 7 e 13 têm forte associação com o autismo foi sugerida por um estudo com 75 famílias subdivididas em grupos baseados nas características de linguagem dos propósitos e de seus consangüíneos.45 Também tem sido associada à região 2q em outras populações com dificuldade de linguagem.46-47 Esses trabalhos têm sugerido que defeitos sociais e cognitivos fazem parte da ampla variação fenotípica do autismo.48 Os defeitos sociais incluem perda da resposta emocional, perda de empatia, hipersensibilidade e preocupações únicas com algum interesse especial. Já os defeitos de comunicação consistem principalmente de dificuldades pragmáticas ou outros problemas de linguagem. A ampliação do espectro fenotípico do autista poderá ajudar na identificação de genes envolvidos na doença. Assim, trabalhos multidisciplinares ou estudos em consórcios são a grande esperança para o melhor entendimento dos TID. Para a prática clínica, testes diagnósticos específicos ainda não são disponíveis. O diagnóstico do autismo deverá resultar de minucioso histórico evolutivo do paciente e inquérito familiar a respeito das habilidades cognitivas e comportamentais do mesmo. A investigação clínica confirmará ou não se o autismo está associado às síndromes mencionadas.
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Décio Brunoni
Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento
Universidade Presbiteriana Mackenzie - Edifício João Calvino
Rua da Consolação, 896
01302-907 São Paulo, SP
E-mail: deciobrunoni@mackenzie.com.br
Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462004000400012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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